Ensino Religioso
24/09/2012
Biografia revela um Maomé hábil e mais "humanizado"
Michel Sleiman | EstadãoUm dos trabalhos mais louváveis do arabista inglês David Samuel Margoliouth, morto em 1940, continua sendo a edição da versão árabe da Poética de Aristóteles, datada do século 10 e feita a partir de uma tradução em siríaco hoje perdida. O texto é nada mais nada menos que o usado por Averróis no seu Comentário Médio, que circulou em latim na Europa até pelo menos o século 16, quando então, e só então, a Poética passou a ser lida em traduções feitas diretamente do grego.
Outra meritória contribuição de Margoliouth é a tradução das Cartas do racionalista sírio Alma’arri e do Compêndio de Ética do persa Ibn Miskawayh que, 11 séculos atrás, instaram à crítica dos dogmas da religião e à diferenciação entre o público e o privado. Um mesmo desprendimento intelectual pode ser encontrado nas obras do próprio Margoliouth como historiador das comunidades islâmicas, desde o momento em que surgiram no século 7 até o declínio da dinastia abássida nos finais do século 10. Dentro desse filão do estudo historiográfico, é de leitura imprescindível seu erudito e nevrálgico Maomé e a Ascensão do Islã, obra de 1905 que a editora Contraponto resgata ao leitor brasileiro na tradução hábil de Sérgio Lamarão.
Acusado, não sem injustiça, de partidarismo, preconceito e pouca objetividade, na avaliação do destacado crítico egípcio A.R. Badawi, o livro surpreende pelo exercício do livre pensamento posto a serviço do que a Ciência chama de "método", algo que tem se perdido nas últimas décadas, não só fora dos centros acadêmicos como dentro deles. A escrita de Margoliouth, diga-se logo, hoje passaria longe do "politicamente correto". Seu Maomé erra, recua nos julgamentos, faz conchavos, persegue, manda matar e, às vezes, age contra o que professa. Embora o anátema impingido a Margoliouth deva ser considerado no âmbito da crítica mais ampla que alguns setores árabes endereçaram ao labor dos orientalistas, por exemplo ao projeto da Enciclopédia do Islã, que preferiu esses últimos aos estudiosos islâmicos, tanto esta biografia do fundador do islã como a citada enciclopédia são produtos, como outros, da Ciência: acertam errando e erram acertando.
Originalmente, a obra integra a coleção Heroes of the Nations, voltada às grandes personalidades que influíram no decurso da História. O autor não entra no mérito da fé, não escrutina o livro religioso, nem as ações ou ditos do Profeta que serviram de linha para a costura do leque de fontes religiosas do islã. Seu foco são as ações do homem que se fez estadista e, sua maior proeza, unificou as desgarradas tribos da Arábia em torno de um mesmo sistema, desenvolvido a partir de um modelo importado. É a matéria biográfica que pode evidenciar, pelo exercício do exame e da análise do historiador, o que o homem Maomé tinha de melhor: "capacidade de reforçar a disciplina, habilidade em escapar dos inimigos e coragem para enfrentá-los, perspicácia para distinguir as notícias falsas das verdadeiras e para entender os desígnios de outros homens" (pág. 17). Suas fontes são as mesmas e tantas que tão propaladamente se anunciam nas biografias politicamente corretas, como a escrita em 1983 pelo também inglês Martin Lings, Muhammad: A Vida do Profeta do Islam Segundo as Fontes Mais Antigas (Attar Editorial, 2010). A diferença da escrita de Margoliouth com relação às das demais biografias de Maomé é que a sua se confessa ciente do perigo de tomar por verídico, nos relatos mais antigos, o fantasioso mas legítimo e típico das hagiografias, embora falseador enquanto elemento da crônica histórica. As fontes mais antigas para a biografia de Maomé ainda se prestam, em alguma medida, para o intento de uma fabulação histórica; o mesmo, contudo, não vale para a construção das biografias de Moisés, João Batista ou Jesus de Nazaré, que têm no leito de referências praticamente só os registros da palavra da fé: os relatos bíblicos.
A lide de Margoliouth com seletas obras do passado árabe e islâmico ensinou-o a ler o fundamental: Maomé foi o menos dogmático dentre os muçulmanos seus coetâneos e, com isso, pôde progredir num meio em que muitos andavam para trás. Aos que vieram depois, muçulmanos inclusos, custa aprender essa valiosa lição.
Michel Sleiman é professor de Língua e Literatura Árabe da USP. Organizou e traduziu a Antologia Poemas, de Adonis (Companhia das Letras). Publicou Ínula, Niúla (Ateliê)
Esta notícia foi publicada no site Estadão em 14 de Setembro de 2012. Todas as informações nela contidas são de responsabilidade do autor.